Singularidades tecno-culturais na região sudoeste do Planalto Central brasileiro no Holoceno Inicial
DOI:
https://doi.org/10.2218/jls.7203Resumo
Este artigo visa contribuir para a ampliação do conhecimento sobre as panóplias de ferramentas líticas presentes em sítios arqueológicos do Holoceno Inferior localizados no Planalto Central brasileiro. Esses sítios têm sido tradicionalmente interpretados dentro do contexto da Tradição Itaparica, cujos artefatos denominados de "lesmas" ou "plano-convexos" foram identificados como marcadores culturais. Os avanços nas pesquisas nos últimos vinte anos sobre as características técnicas, tecnológicas e tecno-funcionais de materiais líticos tipologicamente atribuídos à Tradição Itaparica permitiram uma melhor definição daquele que veio a ser denominado de complexo tecno-cultural Itaparica Lourdeau (2010:59). A partir da coleção lítica de dois sítios, pesquisados inicialmente por Oliveira (2014) e Oliveira (2019), provenientes da região sudoeste do Planalto Central, o sítio GO-JA-01 (Diogo Lemes), com datação mais antiga de 12.717 - 12.143 cal. (Beta-3699), e o sítio MT-SL-31 (Morro da Janela), de 11.994 - 11.316 cal (Beta-78053), buscamos criar condições heurísticas para que desses contextos antigos pudessem emergir um aporte de expressões culturais de baixa visibilidade técnica. Tais expressões são usualmente preteridas por estarem associadas a materiais cuja estrutura artefatual é caracterizada pela alta normalização e/ou pela padronização. Objetivamos, assim, olharmos com mais detalhamento para as ferramentas incisivas sutis que estão associadas às estruturas artefatuais “plano-convexas”.
Nossa pesquisa fundamentou-se na abordagem Tecno-funcional (Boëda 2013:39), a qual permite identificar as coerências que se estabelecem no interior de uma estrutura volumétrica (um espécimen) nos termos de seus subconjuntos estruturantes - minimamente, o(s) gume(s) transformativo(s) e a(s) unidade(s) preensiva(s) - à luz de seu potencial funcional. Ademais, ela permite pensar o sentido técnico das estruturas artefatuais ao reinseri-las no conjunto do qual fazem parte (uma população), fornecendo dados sobre a consistência tecno-funcional das coleções. Em termos metodológicos, a identificação dos esquemas operatórios foi realizada a partir da análise diacrítica dos negativos presentes nos artefatos e dos modos de produção evidenciados com base nos princípios técnicos de afordância, debitage e façonagem.
O ordenamento estrutural entre as porções transformativas e possíveis porções preensivas, nos possibilitou agrupar as seguintes categorias tecno-funcionais:
1) “Instrumentos com façonagem unifacial a partir de suportes normalizados (limaces)” - apresentam estrutura técnica estável, caracterizada por um suporte alongado e volumoso em uma de suas faces. A simetria das laterais e o plano de seção foram obtidos por façonagem, o(s) gume(s) delineados por confecção e podem compor de uma ou mais unidades transformativas. Algumas peças são altamente normalizadas apresentando recorrentemente uma unidade tecno-transformativa, localizada na porção apical. Outras são menos normalizadas, sua estrutura funciona como um suporte onde se instalam mais de uma unidade transformativa. São peças de arenito silicificado e sílex.
2) “Instrumentos com façonagem unifacial com suportes regularizados" - o suporte não é normalizado, os perfis e as laterais são assimétricos. Os princípios da afordância, façonagem e debitage atuaram na estrutura da ferramenta, podendo compor uma ou duas unidades transformativas. São peças de arenito silicificado, quartzito e sílex,
3) “Instrumentos produzidos sobre suportes de seixos” - os seixos foram selecionados por critérios técnicos de afordância, seguidos de façonagem e confecção de gumes, em contornos diversos. São peças de arenito silicificado e quartzito.
4) Instrumentos com modificação restrita” - foram identificados três tipos de estruturas de suportes: algumas pouco regularizadas, provenientes da debitagem tipo C; outras normalizadas, provenientes da debitagem tipo D-discöide; e ainda as de "cadeias operacionais ramificadas" (Bourguignon et al. 2004), derivadas de lascas de façonagem. Os gumes são definidos por retoques ou traços de uso. São peças de arenito silicificado, sílex, basalto e quartzo.
Também pudemos identificar na coleção a ocorrência representativa de núcleos pequenos, não esgotados com presença de negativos de pequenas dimensões, o que nos levou a inferir a possibilidade de produção de suportes ainda menores, contudo, estes não foram detectados na coleção.
Compreendemos que a onipresença dos instrumentos comumente denominados de limaces, presentes na maioria dos sítios do Planalto Central, nos leva a considerar o compartilhamento da estrutura técnica dessa ferramenta, entre diferentes grupos humanos ao longo de pelo menos 4.000 anos. A proposição sobre a dispersão e possíveis conexões desta cultura técnica está mais alinhada com uma perspectiva interativa do que com uma convergência técnica (Chevrier 2012). A variabilidade técnico-funcional dessas peças está associada à temporalidades distintas, isto reforça a ideia de movimento e potencial de mudança nas tradições culturais (Sahlins 1997).
Também destacamos a presença marcante do princípio da afordância (Boëda & Ramos 2017) entre as ferramentas do sítio MT-SL-31, possibilitando a supressão da fase de debitagem. Compreendemos que isso não encurta o tempo da cadeia operatória, neste caso o maior investimento estaria no critério técnico de seleção dos suportes (seixos) visando produzir a futura ferramenta. Neste movimento, entendemos que as categorias natural e cultural são complementares. Desvelam também o enredamento dos grupos humanos com suas cercanias, fazendo-nos considerar não apenas o sítio, mas também o entorno como participantes do projeto cultural.
Os instrumentos de baixa visibilidade foram caracterizados, não necessariamente pelas suas dimensões reduzidas, mas principalmente por sua estrutura técnica ter sido pouco modificada, tornando-as ferramentas de difícil identificação se utilizarmos somente o critério “forma”, sem o desenvolvimento de análises tecnológicas. Incorporar e elevar essa categoria tecnográfica ao contexto da presente discussão, as emparelhando às demais presentes no tecno-complexo de Itaparica, significa dar visibilidade a um conjunto de objetos ainda pouco considerados nas análises tecnológicas da região sudoeste do Planalto Central. Isto, por sua vez, instiga os estudos a irem além do 'formal', do normalizado, seguindo o desafio da arqueologia aplicada ao tempo profundo em termos de se afastar do preconceito que equipara uma maior quantidade de negativos a um maior nível de complexidade tecnológica complexity (Maigrot & Plisson 2006).
As minúcias tecnológicas obtidas com a investigação dos sítios arqueológicos supramencionados, quando consideradas à luz de informações espaciais, cronológicas e paleoambientais, permitem ponderar sobre os cenários concernentes às dinâmicas populacionais desse período. As categorias de ferramentas evidenciadas neste artigo, somadas às particularidades tecno-culturais encontradas em outros locais do Planalto Central, ampliam o conjunto de ferramentas de Itaparica. Proporcionam uma maior compreensão da diversidade técnico-cultural das memórias técnicas dos povos que habitaram a extensa área do Planalto Central brasileiro, possibilitando investigações mais aprofundadas sobre as conexões entre os conhecimentos técnicos presentes em diferentes regiões da América do Sul.
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